segunda-feira, novembro 22, 2004

Michael Bry em Montemor-o-Novo



"Deixei a Alemanha com a minha família, pais e irmã, quando tinha treze anos. Então, emigramos para o Chile, onde segui o ensino secundário e estudei numa escola de artes. Trabalhei num laboratório de uma loja de fotografia, fiz a minha aprendizagem com um fotógrafo retratista e abri um estúdio de retraio fotográfico. Em 1954, assim que me foi possível, deixei o Chile e fui viver para a zona da Baía de São Francisco, onde fiquei durante trinta anos, trabalhando primeiro como fotógrafo dos caminhos de ferro e lançando-me em 1960 como freelancer.
Foi no Chile que eu vi pela primeira vez as fotografias de Henry Cartier-Bresson, e os filmes realistas italianos dos anos quarenta, ficando interessado no estilo fotográfico que continuo a praticar. Houve algumas interrupções quando, impaciente com ocasionais aspectos planos, lisos, das imagens penduradas, me dediquei a criar construções tridimencionais. Uma delas, um "móbil" através do qual se podia passar, esteve exposto no Museu de Arte Moderna de São Francisco. Uma vez que não tinha interesse nem motivação para prosseguir por essa linha de trabalho, voltei à escala de cinzentos centro-europeia, com a sua melancólica ironia, na qual me sentia em casa. Cheguei à conclusão de que esta é a minha casa, sendo isso algo que sinto até hoje.
Desde então, deixei também São Francisco, tendo vivido em vários países antes de vir para Portugal, sempre carregando comigo essa casa que é o saco da minha câmara fotográfica e a minha câmara escura. Os meus "momentos decisivos" acontecem quando o presente e o passado se encontram numa imprevisível sincronia. Nesse momento, eu vislumbro a minha verdadeira casa, que agora pode ser em qualquer lugar.
A minha estética continua centro-europeia. Já senti empatia e admiração por outras abordagens mais aventureiras. E aprendi que a minha tem pouco a ver com os temas ou assuntos se não for pela mensagem, romântica, nostálgica, mas sempre antropomórfica, que elas oferecem.
As formas que me "seduzem" podem ser simétricas ou caóticas. Na simetria o que me interessa são as suas aberrações; no caos, é o momento em que uma constelação brilha sugerindo então uma realidade diferente.
Não pretendo seguir nem os desprivilegiados nem os ricos, o meu trabalho prende-se com o que encontro nos ambientes da classe média, espaços onde me sinto confortável. Já me perguntei, com alguma frequência, se não devia ter mais consciência social e respondi a mim mesmo que o mundo não precisa das minhas imagens de actualidades. Se precisa de mim de alguma maneira, é naquilo que faço melhor.
Agora, vejam vocês.

Michael Bry. Murtosa, 14.2.03
email:michaelbry@portugalmail.com"

"Vestígios Árabes"

"Ao pensar nesta mostra de pintura ocorreu-me um tema que me é muito caro. Sem pretender esgotar esta fonte rica da nossa história, aqui ficam alguns modestos afloramentos.
"Não sei quantos poentes decorreram desde que a civilização árabe nos deixou.


"Entre temperaturas mais ou menos agrestes, o galope do tempo não pára e com ele tudo gira transportando a imaginação para Mil e uma Noites de sonhos reais, testemunhados por oliveiras quase milenares e pedras da mesma idade pertencendo a monumentos que ainda restam dessa civilização. Este rasto jamais se apagará. Neste património cultural é a lâmpada de Aladino que ilumina as noites longas e escuras, oferecendo-nos coragem para enfrentar o futuro. Também ela terá iluminado a cisterna que lá no cimo da muralha se mostra. Foi em tempos a reserva de água, que ao transbordar nas bicas, entoa a canção da esperança e da vida.
"São inúmeras as palavras árabes que integram o nosso vocabulário. Não sei quantos ALgarismos serão necessários para as descrever.
"É impossível deixar de referir a importância da nora, esse engenho trazido pêlos árabes e que ofereceu forte desenvolvimento à agricultura da época.
"De salientar a porta das três ALdrabas*, com duplas funções e destinadas ao homem, à mulher e à criança.


"Ainda o ALforge que pela sua utilidade nos serve para guardar nas suas grandes ALgibeiras as lendas que neste lugar se contam, tal como a bela moura encantada que saí da Torre do Anjo e vem passear pêlos olivais antigos, seus conhecidos, em noites de lua cheia e ainda a lenda das arcas, uma delas contendo a felicidade e a outra o inverso da primeira. Podem talvez estar junto ao Palácio dos ALcaides, no nosso imaginário.
"Não posso terminar sem referir que o morabito aqui representado, com a sua cúpula branca, está construído há centenas de anos e situado perto de Montemor. A sua representação está simplificada tal como seria na sua forma primitiva.
"Gostaria de me ver aconchegada no seu interior, a ALcatifa e a ALmofada seriam bem vindas para nelas repousar o espírito.


"Como curiosidade, os meus avós e outros familiares muito chegados e eu mesma, vivemos nessa casa com traços árabes, durante muitos anos, por isso o meu carinho, aqui bem patente.

•Estudo efectuado pelo poeta e antropólogo Dr. LUÍS F. Maçarico

Isabel Aldinhas"

Isabel Aldinhas, montemorense, pintora



Filha e neta de trabalhadores do campo, nasceu e viveu a infância nos montes e quintas onde o pai vendia a sua força de trabalho para alimentar as quatro bocas que tinha em casa. Ainda quase um bebé, via a lousa da irmã, mais velha nove anos e que já ia à escola, vincada por incontáveis traços de pena que, mesmo depois apagados, deixavam sulcos como o arado na terra. Foram estes mesmo sulcos, que aos olhitos da menina de ano e meio se afiguravam tão fundos, a pedirem à mão para repetir os traços, sem que se apercebesse que já ali havia um arremedo de perspectiva. Ainda hoje Isabel recorda esses primeiros "rabiscos", reproduzidos em tela, ao mesmo tempo que lastima que a lousa da irmã, tantos anos passados, se tenha partido...
Aos quatro anos a irmã lia-lhe histórias de encantar ou inventava-as para a menina que avidamente as bebia, e a seguir ia para o caminho em frente da casa desenhar no chão, na terra, os cenários que a encantavam. Até ir para a escola foram a irmã e as jovens vizinhas as suas mestras na arte de contar para depois ela desenhar.
Sempre que podia, aproveitava tudo o que havia à mão para desenhar: desde o papel dos cartuchos em que o arroz ou o açúcar chegava da mercearia, até panos velhos ou pedaços de entretela já sem outro uso. Os lápis de cor, as aguarelas, os guaches, encontravam aí o campo necessário para reproduzirem as cenas, as figuras, os objectos, que no dia a dia a rodeavam, mas por ela interpretados com sensibilidade e cunho pessoal.
Mas foi graças a uma madrinha abastada que pôde concretizar o seu sonho. Frequentou a Escola António Arroio e outros cursos. Ensinou. Pintou sempre. E pinta o seu Alentejo mágico com as cores delirantes de um Van Gogh. Pinta os mistérios ou o seu imaginário com discretos tons de melancolia. Pinta as vivências a que assistiu, os montes em que morou, os campos onde entretém a vida.
Cada tela sua é um hino à terra, um poema da planície, um rumorejar de águas inquietas...
Uma referência a prender na memória.