VEMOS, OUVIMOS E LEMOS
"cumpridos os deveres compridos deixaram
de assediar minhas horas
doce a liberdade retoma em si minha leveza antiga"
Sophia de Mello Breyner
quinta-feira, dezembro 16, 2004
A caminho do Vimieiro
A viatura acabou de sair da revisão, eixos novos, rodas calibradas, varais polidos, banco estofado de novo, pintura fresca, motor-de-uma-mula afinado. Até os mecânicos fizeram questão de a vir trazer cá à porta de casa...
Amanhã bem cedinho atesta-se o depósito com um fardo de palha... e ala que se faz tarde!, a caminho do Vimieiro, essa terreola lá para o cu de Judas, onde não lembra a um cristão passar de roda, quanto mais ir almoçar!
A viagem é longa, de modo que partimos dois dias antes, não vá o raio da mula empeçar nalguma pedra e lá tem que se perder mais tempo a mudar as ferraduras da alimária! E a preparação para a viagem e para a estadia? Desde há três dias que cá em casa anda tudo num rebuliço, só se fazem e desfazem malas, para não falar nas idas e vindas da modista e do alfaiate. Sim, que isto de ir para as estranjas tem que ser bem pensado e melhor acabado. Umas samarras bem quentes, mais uns xailes de lã, uns lenços e chapéus, caneleiras, que pr'aquelas bandas deve estar um frio de rachar, e além disso não somos pessoas para fazer má figura no meio do povo lá do sítio, isso não senhor! E eu até queria que o meu homem levasse também uns safões, mas já não houve tempo de fazer a encomenda. Só nisto já vão duas malas bem aviadas, para não falar no farnel para o caminho, que em dois dias a gente bem enfarda duas tachadas de arroz de miúdos, cinco dúzias de pasteis de bacalhau, um leitão de Negrais, uns seis pães de Mafra, mais três quilos de jaquinzinhos de escabeche, quatro garrafões de tinto da Carvoeira, e um quarteirão de parrameiros, o que vem dar mais umas catorze cestas. Mais quinze fardos de palha prá mula, calculam como saímos daqui carregadinhos...
A ver se quando lá chegarmos não apanhamos uma barrigada de fome! Fraquinhos como devemos arribar, ao menos que tenham lá umas papas de sarrabulho pr'aquecer a alma à gente, mais um cozido de granitos, um ensopadito de borrego, e umas migas com carne de porco, tudo à fartazana! Com um tintol maduro - aí quatro garrafitas devem chegar pra começar - até se cria uma alma nova!
Eu não procurei, mas espero que não se esqueçam de contar também com a mula, que é animal de muito alimento, com menos duns cinco fardos de palha é capaz de não ficar satisfeita...
P.S. A ver se não esquecemos bússula, sextante e astrolábio!