quarta-feira, março 16, 2005

(Cor)respondendo a um desafio


(Por Milão, de braço dado com a IO e a th)
16 de Setembro de 1969. Manhã cedo, digo o último adeus a Veneza, ainda com vestígios das chuvadas da véspera. Tempo fresquito, que os meados de Setembro já anunciam o tão próximo Outono. Gabardina por cima do vestido leve, sapatos fechados (pechincha comprada em Bolonha), malas de viagem a jeito e máquina fotográfica em punho, aí vou eu abrindo caminho por Rialto até ao "vaporetto". Mais um olhar à laguna, aos velhos palácios, às "rive" e chego finalmente ao comboio que me conduzirá a Milão, última e breve etapa de uma inesquecível aventura de duas semanas, repartida entre Florença e Veneza, com as imprescindíveis escapadelas a outras cidades.
Passo ao lado mítica Verona com pena de não a poder visitar, chego à estação de Milão, onde me desembaraço rapidamente dos "extras", e aí vou eu, leve e feliz, descendo avenidas, atravessando jardins e parques, extasiada. Que diferente da nossa bonita mas ainda tão provinciana Lisboa...
Almoço rápido, talvez uma "pasta" com "pesto", o tempo é pouco para bisbilhotar tudo, um "tudo" muito relativo e limitado, que escassas cinco horas não podem dar para grandes voos.
Eis-me diante da primeira das maravilhas, que deixa esta pacóvia completamente embasbacada: as Galerias Vittorio Emanuelle! Duas ruas que se cruzam, totalmente cobertas, com lojas lindíssimas e esplanadas, tentação de uma bica, cara de certeza, mas fica para o regresso.
"Il Duomo" está além ao fundo, imponente no seu gótico flamejante, exagerado e ostentatório decerto, mas esplêndido. Fotografo de longe, a praça cheia de pombos, como todas as praças de Itália. Agora mais perto, outras fotos, à fachada, à entrada, às torres, aos pináculos, e já lá mesmo ao pé, aos detalhes. Dou a volta, espreito pormenores, outros turistas fazem o mesmo. O deslumbramento parece comum. Finalmente entro na catedral, não sem ter que escapar à acurada vigilância de um zelote que queria à viva força impingir-me um véu: nem calções, nem saias curtas, nem cabeça descoberta. Tiro o cinto, a saia desce até aos joelhos, mas lá o "trapo" na cabeça, santa paciência! Queria era ver os vitrais, as esculturas, as telas, os frescos, enfim, tudo. Com tanta gente, apesar das restrições, muita coisa fica por esmiuçar. E o tempo a escoar-se... Saio de lá maravilhada, estarrecida, completamente esmagada perante tanta grandiosidade. Urge o tal café nas Galerias.
Já numa esplanada de café, dispensável açúcar, e copo e água num jarro (impecáveis nesse serviço, os italianos!), faço contas ao tempo, ainda azamboada com o Duomo. Pois, ainda dá para espreitar o Scala, que é já do outro lado. Acho-o insignificante, apenas o valorizo pelos ininterruptos espectáculos do bel-canto, mas esse já não pude escutar.
Outra vez avenidas acima, levantar a bagagem na estação ferroviária, atravessar a praça para o terminal da Alitália, mesmo a tempo de entrar no autocarro que me leve ao aeroporto. Os olhos ainda cheios da imensa mole dourada da Catedral de Milão.
E no aeroporto, outra surpresa. Um único balcão de check-in a funcionar, horários de partida dos voos era mentira, gente a acotovelar-se ao monte. Que faço agora? Falta uma hora para o avião descolar e por este andar nem daqui a duas horas... Dois padres católicos, um trintão (um borracho, que pena!) e outro mais idoso estão perto de mim com o mesmo ar perplexo. Dirijo-me a eles, em francês, e pergunto-lhes como é que nos desembrulhamos daquela confusão. Responde-me o mais novo, também em francês tão atabalhoado como meu, que o colega está a informar-se disso. Finalmente, lá conseguimos eu e os dois padres, fazer o nosso check-in. Não sem mais um problema para mim, pois dizem-me que eu não tenho o voo confirmado. Teria que ir primeiro a Roma e só depois para Lisboa, fazendo ainda escala sabe-se lá por onde!... Esclarecido o assunto, sento-me no único lugar livre naquela malfadada sala: junto aos padres, a quem aproveito para agradecer mais uma vez a ajuda prestada. Puxo pelo meu "Tio Patinhas" em italiano, precioso auxiliar que me fora na aprendizagem da língua durante toda a estadia, e qual não é o meu espanto quando ouço os dois religiosos a falar... português! Com uma gargalhada que os deixa com o ar mais pasmado do mundo, digo-lhes que, afinal, também sou portuguesa. Acabamos todos a rir que nem uns putos, pois nem a eles tinha alguma vez acontecido coisa semelhante!