terça-feira, dezembro 07, 2004

O Natal da Sónia e do João

Ao vasculhar um monte de papelada ainda por arrumar nos devidos sítios, dei de caras com esta preciosidade: um excerto do livro do João Mário Caldeira "Margem Esquerda do Guadiana".
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O Natal em Santo Aleixo da Restauração
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No Baixo Alentejo raiano, a sul de Barrancos, Santo Aleixo é uma aldeia afastada dos grandes centros e dos eixos importantes de comunicação.
Foi até à meada do século uma comunidade com um tipo de vida assente em costumes muito próprios. Pela sua interioridade, a aldeia não teve outro remédio senão fechar-se sobre si própria numa quase auto-suficiência com aspectos marcantes de vivência comunitária. Desse seu comunitarismo há a salientar, entre outros, a partilha e sorteio anual de lotes de terreno baldio para cultivo dos chefes de família, os rebanhos do povo, quer de cabras, quer de porcos, a eleição dos cabreiros e porqueiros, o trabalho que todos obrigatoriamente tinham que prestar para melhoramentos locais.
Vivendo de uma agricultura de subsistência em terras magras, nunca teve gente muito abastada. Duas classes de pessoas constituíram-na desde sempre: os seareiros, que eram pequenos proprietários, e os trabalhadores sem terra muitas vezes assalariados dos primeiros ou trabalhando sazonalmente em grandes herdades de lavradores não residentes na aldeia. Havia assim os remediados e os que experimentavam dificuldades em toda a roda do ano. A solidariedade entretanto não era palavra vã e o facto de haver à volta do povo terras baldias de usufruto comum ia resolvendo melhor ou pior o problema dos mais necessitados,
O isolamento da povoação preservou até tarde alguns dos seus hábitos de vida consolidados ao longo de gerações. De entre eles a comemoração do Natal manteve o seu cunho próprio, até quase aos nossos dias. Do Natal antigo de Santo Aleixo se proporciona falar agora.
Mesmo quando a aldeia mantinha uma população pujante de quatro mil almas, o Natal nunca foi uma festa que a população adulta festejasse com o empenho e disponibilidade de outras festas. A calendarização anual das culturas, ditando o ritmo dos trabalhos no campo, ditava também a oportunidade das festas. Ao contrário do Carnaval, vivido efusivamente num período de pausa da labuta agrícola, o Natal apanhava a população trabalhadora em plena campanha da azeitona e a meio das sementeiras do trigo.
Todavia, nas casas onde havia gente disponível e as faltas não impediam que se fizessem gastos suplementares, na noite de 24 as mulheres amassavam os brilholos que fritavam ao lume na sertã de ferro em que se faziam as migas. A meio do serão fazia-se um magusto com bolotas e comiam-se os fritos com café. A consoada a isso se resumia na aldeia. Nas casas de gente de mais posses havia um pouco mais de fartura, juntava-se mais família, aparecia a aguardente doce, os figos, as amêndoas, mas não havia grandes variantes. Na singela comemoração habitualmente só participavam as mulheres, os velhos arrumados a um canto pela doença ou decrepitude e a rapaziada mais nova que ainda não tinha ordem para sair.
Os homens não paravam em casa. Nas vendas, nas colectividades onde eram associados ou nos montes dos arredores de Santo Aleixo, comemoravam entre si a noite de Natal à volta de uma fritada de carne regada com vinho. Daí saíam alguns, já noite alta, para «cantarem ao Menino» pelas ruas da aldeia. Era um cante mais pausado que as modas tradicionais. Uma toada arrastada com versos lentamente repetidos, de conteúdo dúbio, meio pagão, meio religioso. Com eles, no entanto, a noite de Natal ganhava outra magia. Fora de horas, rompendo o frio, o cante soava de modo especial, solitário, evocativo de um sentir especial das populações da aldeia. Recordava um Deus ainda não esquecido que viera ao mundo em noite tão fria. «Namorou-se o Deus-Menino de uma cigana em Belém...» entoava a voz do ponto. E o coro respondia gravemente, no meio da escuridão, arrastado e sentimental, «olha a dita da cigana, tão lindo amor que tem...»
Se os homens do coro, de braço dado, paravam à porta deste ou daquele, ninguém lhes negava a esmola pela deferência recebida. Se não havia ainda carne da matança do porco alguma coisa se arranjava, normalmente dinheiro. Era uma noite diferente.
Entretanto na aldeia, o Natal era, e de certo modo ainda é, a festa dos rapazes. Que o digam aqueles que o viveram na sua juventude. Logo que caíam as primeiras chuvas e os dias de Outono se pintavam com as cores anunciadoras do inverno, os rapazes começavam a sonhar com «o lume de Natal». Era o tempo em que a bolota amadurecia nos montados e se levavam os porcos de engorda para as varas comunais. As sementeiras estavam no auge. Carros de parelha transportando no leito as charruas deitadas, enchiam de barulho as manhãs de bruma a caminho das terras ainda quentes. Quadrilhas de homens e mulheres tinham emigrado com armas e bagagens para os grandes olivais da região de Moura.
Ainda que não totalmente alheios às coisas sérias da vida, começava a surgir um Natal sonhado na cabeça dos meninos de Santo Aleixo. Não o Natal de agora, injectado pela televisão, massificador, embrulhado nos papéis de fantasia de um lucro impiedoso. Era um Natal autêntico, à medida das ambições dos rapazes da aldeia e por eles essencialmente fabricado.
A rapaziada estava dividida em grupos. Não se sabia muito bem por onde passavam as fronteiras de cada um, se nesta ou naquela rua, mas elas existiam de facto, delimitando um lugar de reunião, local de todas as horas, de todos os jogos, de todas as invenções. Eram grupos homogéneos, coesos, antagónicos entre si. Não ter grupo era como não ter pátria. Não ter quem respondesse por si, não sentir o gosto da solidariedade. Todos os rapazes de Santo Aleixo tinham o seu grupo, o seu local de pertença. Havia os da «Esquina», os da «Coitada», os do «Jogo», os dos «Ferragealinhos». Logo que chegava a meada de Novembro, cada grupo afinava estratégias para o seu «lume de Natal». Havia de ser o maior, aquele que tivesse a maior quantidade de lenha, os madeiros mais pesados. Sonhava-se com o espanto que havia de causar tão grande fogueira. Com o seu clarão na noite de breu em que mergulhava então a aldeia. As faíscas riscando o céu «para aquecerem o Menino». Era um momento fantástico, esperado com impaciência.
Antes ainda das férias do Natal, já os rapazes à saída da escola começavam a sondar os possíveis locais de saque às medas de lenha dos quintais. Não tardava que soubessem quais eram os mais bem providos, os de mais fácil acesso, os menos vigiados. E então, dia-a-dia, num esforço continuado de formigas, em entreajuda exemplar, tronco a tronco, iam juntando as achas para o seu fogo natalício. Algumas vezes faziam o papel de bons rapazes. Em vez do furto, pediam a lenha invocando que quem a oferecia ficava com o direito a aquecer-se na noite fria da consoada.
Um dos problemas que se punha aos rapazes, era o lugar de esconderijo do material recolhido. Havia que evitar que outros grupos o roubassem ou que o mesmo fosse recuperado pêlos seus legítimos proprietários. Alguns destes, mais ciosos dos seus haveres ou compelidos por evidentes necessidades, tiravam-se de cuidados e vinham afrontar as manhas dos rapazes, que tudo faziam para não devolver o espólio arrecadado.
Neste apaixonante trabalho feito com devoção e aventura, decorria a contagem decrescente para a noite de 24 de Dezembro em cujo lume se concretizavam e consumiam os sonhos dos jovens de Santo Aleixo em campanha natalícia.
Na manhã do dia prometido, a rapaziada despertava mais cedo. Cada um desencantava o chocalho maior possível e cada grupo percorria a aldeia anunciando a véspera de Natal com o tocar repetido dos badalos. Era a «chocalhada». Cumprido o ritual, os rapazes iam então aos montes mais próximos pedir aos feitores das herdades a quota-parte de lenha para o lume dessa noite. De lá regressavam, chocalho ao pescoço, carregando um pau de azinho em cada braço.
De tarde era a montagem da grande pilha de lenha nos largos de Santo Aleixo respeitantes à área geográfica de cada grupo. Uma trave levantada sobre o grande monte de madeiros prolongava a vaidade dos rapazes ainda mais para cima. Com presunção, todos se reviam no fruto do seu trabalho. Um mais decidido ou um adulto disposto a colaborar chegava fogo à lenha mal tinha caído a noite.
Logo que o fogo ateava, soltava-se a alegria esfusiante dos rapazes em palmas, gritos e vivas. Membros dos vários grupos circulavam de lume em lume, medindo grandezas, não raro desmerecendo o trabalho alheio. Ranchos de homens e de jovens em ruidosas cavalhadas percorriam também os largos da aldeia para «se aquecerem» nas enormes fogueiras de Natal.
Os rapazes regressavam cedo a casa, prostrados pela agitação e cansaço de um dia cheio. No largo ficava ainda a arder o seu lume de Natal, motivo de tantas emoções e canseiras. Há menos de meio século atrás, só alguns punham em casa as botas à lareira à espera de presentes. A grande maioria deles, porque andava descalça e sabia amargamente que mesmo que tivesse botas o «Deus-menino» não lhe podia dar nada. Tinham um pouco mais de sorte os filhos dos seareiros que exultavam de manhã com a meia dúzia de chocolates ou outra prenda qualquer deixados por um Deus mais cordial. Entretanto podia acontecer que em anos maus somente encontrassem cardas novas no piso das botas ou um brinquedo usado que meses antes lhes tinha desaparecido. A dureza da vida não poupava ninguém.
Os tempos mudaram. A aldeia perdeu a sua população válida que teve de emigrar devido à incúria do poder para com as regiões isoladas do interior. É certo que os poucos que lá vivem hoje têm menos faltas económicas, mas maior isolamento, porque o espírito da aldeia como povoação de facto se esboroou com muitas das suas tradições.
A aldeia está de facto mais pobre. Os brilholos, os «magustos», o «cantar ao Menino», as «chocalhadas» e os «lumes de Natal» que em parte ainda subsistem em Santo Aleixo, são ecos de uma comunidade infelizmente dissolvida
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Vai ser assim o Natal dos meus sobrinhos...

Viagem



Escorre o sol por esse Alentejo mas sem que lhe falte a friagem de que se fala por aqui.
Percorrer a A2 já se tornou num hábito, mas hoje atento mais na terra em falsa letargia. Falsa sim, porque os colos, os ligeiros vales, os plainos, se entreabrem em mais ou menos verdejantes remendos, a transgredir a terra vermelha e amarela, vislumbre de papoilas e searas que já foram e voltarão a ser.
Conheço estes campos de cor, de tantas e tantas vezes os ter atravessado, a redondeza das copas dos pinheiros, os sobreiros ganhando a nova pele, montes abandonados e outros que recriam vidas novas, além a solitária brancura de uma ou outra aldeia, as torres da basílica de Castro Verde, rebanhos tasquinhando sob o planar de um milhafre ou a curiosidade de dois corvos estouvados, aqui mesmo uma cegonha em pacífico voo, a igreja de Messejana acolá junto ás ruínas do que foi um castelo, e Beja, Beja, lá muito ao fundo, e já passámos pelo Sado, caprichoso e viajeiro, a aparecer e desaparecer, a assomar-se para de novo abalar, até que em Alcácer, do sal, do sol, do sul, se queda embevecido antes de seguir jornada, e é já a Arrábida que se recorta fugaz no horizonte, espreitando disfarçadamente por baixo das sorrateiras nuvens que chegaram do litoral e se quedam pelo castelo de Palmela, em Vale de Barris ou na Serra dos Gaiteiros.
Lisboa está perto, e a Serra de Sintra também...
Chego a casa com a secreta mágoa de não ter puxado pela manga do Fernando a desafiá-lo para nos perdermos, por tempo indefinido, nesse Alentejo que ficou para trás...