terça-feira, agosto 31, 2004

Esses passeios de domingo

Aos domingos de manhã era sacramental: tomado o pequeno-almoço, aí saíamos eu e o meu pai para dar um passeio pelo campo. A mãe e a avó até agradeciam a nossa saída, para poderem dedicar-se às coisas da casa, enquanto o avô se entretinha entre a criação e a horta.
O pai trazia esse hábito enraizado desde menino, pois nado e criado numa zona rural a norte de Lisboa, cedo se habituou a calcorrear os campos, quintas e pinhais dos arredores, com o irmão Álvaro, um pouco mais velho, e os amigos deste. Iam aos ninhos, à fruta, ao ramisgo lá para o fim das vindimas. Saldavam-se estas aventuras numa muito provável dor de barriga, além de calções rotos, e nos responsos da tia Mariana.
Mal eu comecei a dar dois passos sem cair, o meu pai levava-me para a “serra”, ali mesmo ao lado de casa. Era um terreno abandonado, coberto de ervas e algum tojo, com uns afloramentos rochosos aqui e ali que me dificultavam os passos… Mas tinha flores! Uns malmequeres brancos, com um cheiro execrável, ou as simples flores do trevo, faziam as minhas delícias e eu insistia em levá-las para casa, apesar de lá chegarem completamente murchas. O meu grande drama era saber como atravessar as “pedras”… Para mim, com uns três anos, pareciam as Montanhas Rochosas! Mas com mais ou menos tropeção, lá aprendi a trilhá-las, e semana após semana tornávamos aos mesmos caminhos e outros que vinham a seguir.
Cresci com estes passeios de domingo e o seu sabor a aventura. Descobri os campos que hoje já foram devorados pelo betão, apanhei pinhões na Quinta dos Lóios, fascinei-me com as ruínas da “fábrica da oca”, aprendi nomes de plantas e de árvores. Saltei por montes e valados e atravessei vezes sem conta a ribeira das Jardas sobre uns velhos troncos que, de início, bem me intimidavam... Apanhei braçadas de flores e avencas numa velha mina de água, para levar à minha mãe.
Invariavelmente, os meus joelhos e pernas acusavam, de tantos arranhões e esfoladelas, o “esforço” das excursões, o que seriamente indignava a minha tia Herculana, por casa de quem sempre se passava. E imprecava o meu pai, “olha prá menina, coitadinha…”, enquanto me pintalgava toda de mercurocromo. De seguida a “menina, coitadinha” ia pular para o jardim da tia, improvisado entre leiras de couves e alfaces, mas sempre tão colorido e perfumado que era irresistível “roubar” mais umas flores…
E os passeios ao campo, que na altura ainda eram vastos e cheios de segredos para desvendar, fizeram parte integrante dessas manhãs de domingo, cada vez menos disponíveis, até à minha juventude. As estações do ano pautavam-se pelos cheiros. Ganhei um íntimo afecto à terra molhada e ao verde tenro das ervitas a despontar com as primeiras chuvas de Setembro, assim como no pino do verão, ao cheiro acre das ervas secas e da resina dos pinheiros, e às madressilvas e giestas da primavera. E ao cantar dos melros e rolas e pintassilgos que se abrigavam no arvoredo das margens da ribeira que, ainda desenxovalhada, seguia um caminho serpenteante entre juncos e pedras. E também ao trilar dos grilos, que se escondiam e calavam mal nos aproximávamos.
São esses cheiros e sons que, apesar de tanto caminho andado, ainda hoje vivem comigo.
São eles que me fazem retornar sobre os passos da infância.