sábado, setembro 18, 2004

António Gedeão

Poema da buganvília

Algum dia o poema será a buganvília
pendente deste muro da Calçada da Graça
produz uma semente que faz esquecer os jornais, o emprego e a família,
e além disso tudo atapeta o passeio alegrando quem passa.

Mas antes desse dia há-de secar a buganvília
e o varredor há-de levar as flores secas para o monturo.
Depois cairá o muro.
E como o tempo passa
mesmo contra vontade,
também há-de acabar a Calçada da Graça
e o resto da cidade.

Então, quando nada restar, nem o pó de um sorriso
que é o mais leve de tudo que se pode supor,
será esse o momento de o poema ser flor,
mas já não é preciso.

Mimetismo felino

Aldeia de Monsanto, Agosto de 2001

Manhã de sábado

Sete horas. A manhã está ensolarada e calma, unicamente enfeitada com o matinal melro que “mora” aqui em frente, as rolas que se mudaram não sei para que árvore das redondezas e a pardalada da faia lá ao fundo da rua, que se faz à vida. Hoje não se ouvem passos apressados pela escada abaixo nem a porta da rua a bater em cadência enfadonha.
Sete e meia. Do outro lado do largo, começam a chegar os ruídos dos ferros que se descarregam e as marteladas que os fixam no já maltratado pavimento. Vozes dão ordens ou trocam dichotes. Anuncia-se a feira que daqui a pouco vai animar esta “aldeia”.
Dez horas. De alcofa na mão, é a minha vez de me misturar ao bulício no seu auge, não sem antes ir tomar a indispensável “bica” no acolhedor café da D. Isabel, a esta hora cheio de gente. Abundam os ciganitos, a pedir chupas e gomas, que as mães, entretidas com um galão e um queque, lá vão pagando, entre uma reprimenda e um encolher de ombros, certas de reaver a despesa da canalha com a venda de mais uma t-shirt.
“É três peças cinco euros, só cinco euros!”, “A cuequinha a um euro!”, “Ó crida pode esprimentar a texérte, é de marca!”, “Ai não gosta? O raio da m’lher é muito fina!”, esganiçam-se elas e eles atrás das precárias bancas, montadas sobre cavaletes periclitantes e placas de cartão prensado que já viram mil e uma feiras. Às vezes, sob o peso da mercadoria ou da mão de uma potencial freguesa mais alentada, lá vai tudo parar ao chão, ao da rua, que lá por casa já o varreu e serviu de cama a cães ou gatos!...
Por entre roupas de contrafacção e duvidoso gosto, loiças e plásticos para todos os usos, grades com galinhas e coelhos vivos, “Leve á confiança, que não tem moléstia...”, arribamos á zona das hortaliças e frutas, na maioria e felizmente oriundos de hortas e pomares caseiros, tratados quase sem pesticidas nem adubos sintéticos, mas também sem o ostensivo rótulo de “ecológico”.
Entre verdes exuberantes de couves e alfaces colhidas de véspera, pavoneiam-se tomates, cenouras, pimentos, exibindo a alacridade do seu colorido e frescura. A adocicada cebola nacional e a batata olho-de-perdiz disputam espaço e primazia com maçãs bicadas por pássaros atrevidos, pêssegos aveludados e sumarentos, cachos de uva moscatel que só nestes sítios é possível encontrar. Cheiros a terra e a louro, a suor e a coentros...
Culmina-se o giro das compras com o apetitoso pão de Mafra e os parrameiros saloios, gostosos a limão e erva-doce e saboreados com gulodice no rápido caminho de regresso a casa.
Fim-de-semana na minha quase aldeia ás portas de Lisboa, tentando entender, à luz destas coisas aparentemente simples, outras e outras e outras e ainda outras mais complicadas que nos ensombram a existência neste prenúncio de Outono.

- Barbara -

Rappelle-toi Barbara
Il pleuvait sans cesse sur Brest ce jour-là
Et tu marchais souriante
Épanouie ravie ruisselante
Sous la pluie
Rappelle-toi Barbara
Il pleuvait sans cesse sur Brest
Et je t'ai croisée rue de Siam
Tu souriais
Et moi je souriais de même
Rappelle-toi Barbara
Toi que je ne connaissais pas
Toi qui ne me connaissais pas
Rappelle-toi
Rappelle-toi quand même ce jour-là
N'oublie pas
Un homme sous un porche s'abritait
Et il a crié ton nom
Barbara
Et tu as couru vers lui sous la pluie
Ruisselante ravie épanouie
Et tu t'es jetée dans ses bras
Rappelle-toi cela Barbara
Et ne m'en veux pas si je te tutoie
Je dis tu à tous ceux que j'aime
Même si je ne les ai vus qu'une seule fois
Je dis tu à tous ceux qui s'aiment
Même si je ne les connais pas
Rappelle-toi Barbara
N'oublie pas
Cette pluie sage et heureuse
Sur ton visage heureux
Sur cette ville heureuse
Cette pluie sur la mer
Sur l'arsenal
Sur le bateau d'Ouessant
Oh Barbara
Quelle connerie la guerre
Qu'es-tu devenue maintenant
Sous cette pluie de fer
De feu d'acier de sang
Et celui qui te serrait dans ses bras
Amoureusement
Est-il mort disparu ou bien encore vivant
Oh Barbara
Il pleut sans cesse sur Brest
Comme il pleuvait avant
Mais ce n'est plus pareil et tout est abimé

C'est une pluie de deuil terrible et désolée
Ce n'est même plus l'orage
De fer d'acier de sang
Tout simplement des nuages
Qui crèvent comme des chiens
Des chiens qui disparaissent
Au fil de l'eau sur Brest
Et vont pourrir au loin
Au loin très loin de Brest
Dont il ne reste rien.


Jaques Prévert, "Les paroles"