quarta-feira, janeiro 25, 2006

Palavras de José Saramago...

...proferidas durante a sua vinda ao Concelho da Moita - Biblioteca Municipal, mensagem que muitos considerarão muito rica de reflexões e de preocupações que à nossa vida dizem respeito

"Olá, boa tarde a todos.
É com muito interesse que volto à Baixa da Banheira, esta grande urbe que eu conheci como aldeia.
Aliás, a aldeia ainda se pode entrever no meio desta grande cidade, que eu nunca soube por que se haveria de chamar de Baixa da Banheira.
Há anos disse num Congresso da CGTP que o nosso País está hoje após a Revolução de Abril de 1974 tal como estaria se não tivesse havido Revolução.
Caiu-me o Carmo e a Trindade em cima, colocaram na minha boca palavras que eu não disse, pretenderam que eu defenderia que não tinha valido a pena haver o Abril de 1974.
Não.
O que eu disse é que não sei se temos democracia.
Na verdade, temos um poder democrático regido por poderes que não são democráticos.
Vivemos numa democracia parcial.
Os poderes transnacionais é que governam, e eles não estão interessados no bem da nossa cidade, antes sim nas suas folhas de resultados.
Um regime democrático, não é que não seja importante, mas não é suficiente.
A sociedade humana está doente.
O ser humano vive mal, exceptuando aqueles que sempre viveram bem.
Vejamos o exemplo de New Orleans:
No País mais rico e poderoso do mundo, não havia disponíveis bens essenciais para acorrer às vítimas, nem cobertores, nem geradores, nem outras respostas de primeira necessidade; foi necessário os USA lançarem pedidos internacionais de ajuda nesse sentido.
Nas vésperas do Furacão Katrine, a ordem de evacuação da cidade foi dada. Saiu quem tinha carro próprio, ficou na cidade quem não encontrou alternativa à fuga individual.
Isto no País mais rico do mundo.
As diferenças entre pobres e ricos são cada vez maiores, e maior é a diferença entre os que sabem e os que não sabem.
Na Idade média, o saber estava nas mãos e na cabeça de uma minoria, sempre ou quase sempre teólogos e embriões da investigação e do pensamento científicos.
Não havia interesse nem meios para o saber chegar às massas.
Bastava que todo o mundo soubesse apenas que deus fez o céu e a terra, e acabou.
De resto, as pessoas viviam num caldo de superstição, realidade bem mais forte que religião.
Agora, estamos numa nova idade média.
O conhecimento científico está concentrado numa minoria, que sabe cada vez mais, face a uma imensa massa de ignorantes que somos todos nós.
Sabíamos coisas há anos, que deixámos de saber.
Por exemplo: diante de uma máquina de escrever, bastava-nos levantar a sua tampa, para perceber, mesmo que ao de leve, como funcionava. Podíamos verificá-lo.
Hoje, um computador é um mistério, nós quase que apenas somos macacos amestrados a quem se ensinou a pôr os dedos nas teclas certas.
Será que teríamos tempo e vida para conhecer tudo?
Francamente não.
Mas o oposto não é suportável.
Como se sabe, o nível com que se sai das Universidades é cada vez mais baixo.
As pessoas pensam cada vez pior;
Pior, não sabem pensar.
Há tanta coisa para dizer sobre isto que nos preocupa, tanta coisa para discutir, que eu nunca mais acabava.
Enfim, sobre as Bibliotecas, que é o assunto que nos traz hoje aqui.
Há dias, vieram a Lisboa 2 Jornalistas da Agência EFE, para comigo conversarem numa Biblioteca Municipal.
Fomos juntos ao Palácio das Galveias, ao Campo Pequeno, a uma Sala de Leitura que entra na história da minha vida, e eu entro nela.
Uma coisa é saber ler, de forma mecânica, outra coisa é meter-se uma pessoa dentro de um livro.
Para tal, é preciso curiosidade, é preciso paixão.
Quando era rapazinho adolescente, eu não tinha um só livro em casa.
Nessa Sala de Leitura, e porque não tinha quem me orientasse, eu lia tudo, o que entendia e o que não entendia.
Entrar numa Biblioteca, pela primeira vez, é como chegar e entrar numa ilha desconhecida.
É preciso abrir o nosso próprio caminho.
Nas Galveias encontrei de novo quase 70 anos passados (farei 83 anos de vida dentro de 2 a 3 meses) a sala de leitura, a ilha onde tive de procurar o meu caminho.
Foi como se o tempo tivesse dado uma cambalhota.
Não fui eu que lá entrei agora (depois da vida que vivi, dos livros que escrevi, depois do Nobel, sim porque não me posso envergonhar do Nobel que recebi), quem entrou foi o tal adolescente.
Nessa altura, aos meus 19 anos, comprei os meus primeiros livros com 300$00 emprestados por um amigo.
Nesses anos de 1939/ 1940 (era quase a pré-história), os jovens tinham uma vantagem sobre os de agora.
Não havia play-stations, nem TV, nem Internet.
Mas a sensação que tínhamos ao termos um livro na mão, era a de passarmos a ter tudo.
Hoje dir-me-ão que esse tudo se supre com outras formas de aquisição de conhecimento.
Cuidado, pregar-vos lições de moral, eu não quero.
Mas parece que se quer resolver o velho problema da quadratura do círculo, que não tem resolução, com métodos como estes:
Os jovens têm de aprender;
Vamos ver se conseguem aprender sem esforço;
OK: vamos pedir-lhes trabalhos de grupo.
A fórmula surge como magnífica. Em geral, nesse grupo, 1 ou 2 fazem o trabalho, e 5 ou 6 assinam por baixo.
É preciso saber que tudo precisa de esforço.
Viver o aprender, viver uma paixão, amar, viver, tudo precisa de esforço.
Acontece que a indústria do ócio fornece quantidades incomensuráveis de bugigangas, que não facilitam ou não permitem desenvolver o aprender a aprender, nem o desenvolvimento da sensibilidade.
A responsabilidade de viver é uma necessidade, é uma capacidade responsável que nos é própria e inerente, pelo facto de sermos seres humanos.
Isto onde vivemos é um mundo
Mau
Feio
Sujo
Injusto
Um mundo onde parece impossível que aceitemos viver, como se nada houvesse a fazer contra isso.
Não temos poder.
Ah, esquecia, temos o poder democrático.
Mas esse está condicionado e gerido por poderes que de democrático não têm nada.
Ler um livro é um esforço, implica trabalho.
Seja um romance, um livro de história ou de sociologia.
O trabalho é necessário.
Ou o conhecimento entra para dentro de nós, ou é pura pintura que com o tempo cai.
Fala-se hoje muito de formação contínua. Mas isso não pode ser um fato feito de remendos, embora possa cobrir o corpo.
No passado havia as joelheiras, os fundilhos, os remendos.
Mas o conhecimento não pode assentar em remendos.
Há uma questão que não tem que ver com diferenças de idade.
Uns viverão pouco.
De outros se espera que vivam muito.
O Mundo é muito grande, mas há algo de nome Portugal.
Ainda ontem saiu o Relatório sobre o Desenvolvimento Humano, onde surge que Portugal perde posição relativa.
Apesar da aparência de prosperidade, é preocupante o endividamento das famílias portuguesas, ao ponto de se dever dizer que por detrás da aparência, se vive francamente mal.
Dou-vos um pequeno exemplo:
Quando publiquei em 1980 o ‘Levantado do Chão’, telefonou-me um amigo meu, a quem oferecera um exemplar.
Disse-me que não percebera nada.
Como se sabe, quando falamos, não há virgulas nem pontos finais, nem tão pouco pontos de interrogação. Foi também assim que iniciei a escrita que desde então inventei.
Por isso lhe respondi que lamentava muito, mas que lhe podia dar uma sugestão:
‘Olha, experimenta ler em voz alta’, disse-lhe.
Como resposta, recebi um ‘já compreendi’, ‘o que tu pretendes é que a pessoa ouça dentro da sua cabeça o que está a ler’, esclareceu-me esse meu amigo.
Sabemos que os jovens saem das universidades e não pensam, pior, não sabem pensar, ao ponto de serem muitas vezes incapazes de pôr no papel algo que faça sentido.
Ora, os ricos não precisam de saber nada, só têm de saber comprar e gastar.
Mas para nós, é fundamental saber como é o mundo.
É preciso ler, pensar e debater.
A leitura é um trabalho, mesmo que dê prazer.
Há que procurar o lado do prazer.
Reporto-me à Escola Primária, para poder falar de leitura em voz alta.
Quando o Mestre pede ao menino Xico (nome que hoje nenhuma criança aceitaria ter), ou à menina Sónia (nome que tantas meninas gostam agora de ter) ‘levanta-te e lê’, tudo acontece.
A familiaridade com a letra impressa, ou começa na Escola Primária, ou não virá depois.
Isto tudo é óbvio.
Mas tenho de admitir que para outras pessoas, com outros interesses, que se colocam noutras posições, isto pode não significar nada.
Em Milão, quando de uma recente apresentação de um livro meu, Umberto Eco teve uma frase terrível.
Eco é uma pessoa muito vital, forte, alegre, não é o género de académico mergulhado nas coisas interiores.
Ele disse ‘Tenho medo do futuro pelo meu Neto’.
Isto quer dizer:
Tenho medo do futuro, onde não irei chegar;
Mas o meu Neto vai lá estar;
E eu tenho medo do Mundo em que o meu Neto vai viver.
Nós aqui inventámos o célebre conceito que recomenda que, quem vier atrás que feche a porta.
É puro egoísmo.
Haverá porta?
Haverá casa?
Como será?
Aqui volto a New Orleans: é tão fácil passar-se da prosperidade óbvia ao desastre completo.
Houve quem dissesse que New Orleans já antes fora descrita no ‘Ensaio sobre a cegueira’.
Com o barril de petróleo a caminhar para os 100 USD, a humanidade pode derrubar-se.
Nós que pensávamos, como dizia Leibniz, que vivíamos no melhor dos mundos, devemos constatar:
É verdade, mas…
A instabilidade é latente, as consequências são imprevisíveis.
Isto que eu digo deveria ser um agradecimento, lamentando que a rapaziada não tenha tido paciência para vir até cá (o certo é que a Sala escolhida como alternativa ao Salão maior até está cheia, e até tem gente de pé, que são os mais corajosos).
Na verdade, há tantos centros culturais, mas a crise da cultura nunca foi tão grande.
Confunde-se com facilidade cultura com espectáculo.
É verdade que espectáculo também é cultura.
Só que o espectáculo ocupa demasiado espaço das outras manifestações culturais, da cultura no seu todo.
Sejamos claros: o que é que eu tenho de fazer num concerto de Rock?
Pagar o bilhete, bem mais caro que um livro (de cujo preço caro sempre nos lastimamos, sem esquecer todo um universo que ele tem de alimentar);
E aplaudir.
Desse concerto, o que fica?
Uma recordação.
Com um livro, é diferente.
É como entrar numa ilha desconhecida. Passados 5 anos, volta-se à ilha e descobrem-se novos caminhos que se julgava não existirem.
Espero poder encontrar-vos em qualquer outro lugar, enquanto houver vida.

(Obrigada, F.Duarte, por me teres enviado este texto.)